A Geada-dente-de-cão

Geada -dente-de-cãoHá já bem munto tempo que nã via geada-dente-de-cão cmo esta…

Nã sê se vomecêas já alguma vez viram geada ó não. Calhando, munto menes viram daquela de dente de cão, qu’ era coisa que, qondo ê cá era môce-pequene, caía muntas vezes.

Alembrí-me a falar disto premode um caso que se dé com-migo, inda há bem pôco tempo, numa volta quê cá fui dar com a minha Maria e mái uma carrada de famila. Foi-se numa excursão queles fazeram paí no Intrudo pa quem quesesse ir ver as Grutas d’ Aracena e dar pre lá umas voltas à pata.

Aquilo iam pa lá coisa dumas trinta ó qôrenta pessoas, más um menes um, tudo munto adevertido e fêtinhos pa dar à perna, mái atão o tempo nã corré à nossa fêção e só no permêro dia é qu’ inda andemos quasequer coisinha de jêto. E, méme assim, com um geadão, uma coisa temente…

Alevantamos-se de manhãzinha bem cedo, rapimpamos-se com um quebra-jum queles deram lá na pensão – aquilo era quái à descrição, ora, hôve menino qu’ incheu a pança logo pô dia entêro… – prantaram com a famila toda drento da camineta e foram largar a gente a umas belas cinco ó sês léguas de lonjura.

Geada-dente-de-cãoEra preciso ter munta conta pa nã se dar algum escorregão…

Tã penas abriram a porta da camineta, ê cá fui logo o premêro a sair que, com a barrigada que panhí ô café, já nã ia lá munto bom cá pe drento. Nã é quê use a nã prosar, quisso a minha Maria é que l’ acontêce quái sempre, mái o chòfer dava as curvas qu’ até zunia e, atão, béque-me sintia já assim umas ãinsas e, dora im qonto, até me vinha assim – com lecença da palavra – um gole à boca.

De manêras que saí logo de rompante, panho aquele ar frio qu’ até cortava, digo pra mim:

– Ai que barbêro quele tá aí!… Minhas belas orelhas!…

E, dezer a verdade, inda joguí assim a mão a uma e quái que me parceu quela tava a incurrascar. E a ponta do nariz?!… Ai a ponta do nariz, mês belos amigos!… Nã sê se me doía se nã na sintia…

Mái nã foi sol de munta dura quê cá desqueci-me logo disso tudo. E isso premode quem? É que dí com os olhos numas tôiças que tavam logo da bandinha de lá da valeta, tudo branquinho. Nã é quê cá nã tevesse já repairado, durante o caminho, que tinha caído um geadão marafado e tava tudo esbranquiçado, mái daquela ali já há mái que tempos quê nã na via…

– Nã vês, Maria… Olha lá pra isto!… Esta é de dente de cão!…

– Õi!… Que frio!… Olha lá, sê calho a nã trazer o mê barrêtinho de lã pa pôr na cabeça…

Geada-dente-de-cãoCada passada quma pessoa dava ôvia a geada a se esmigalhar debaxo dos pés…

E, inda mal nã tinha acabado de falar, já o tava a infiar na cabeça até ô canto de baxo das orelhas. Já do mémo nã me pude ê gabar que nem pensí im tal coisa. Sim, quê cá podia munto bem ter levado o mê boné d’ orelhas e tava governado… Mái dêxí-o im casa. Alguma vez ê cudava dir dar com uma coisa daquelas assim tã desviado do monte?!…

O resto da famila que saíu à última da camineta tamém se foram aconchigando com os agasalhos que cada um trazia, mái faziam todos uma clamada qu’ até dava dó. Menes um que vinha lá no banco de trás – tenho tado aqui a ver se me descorre o nome dele mái nã m’ alembra. Esse, más um nada, fecava fechado drento da camineta. Aquilo foi méme à escapúla…

Pro jêto, o homem tinha perdido a nôte, assantô-se lá no banco de trás sozinho, ferrô a dromir, já tinha tudo abalado a andar qondo ele acordô e se viu na camineta sem companha. Desatô a bater no vrido e a chemar pra gente, vá lá qu’ inda hôve quem desse por ela…

Saíu de lá, vinha béque-me mê insampado, deu uma carrêra à mecha toda, aparô um coisinho à minha frente e desata a lambarear. O que me havera d’ acabedar… Logo a mim que queria tirar retratos e nã me calhava nada ir ali a tramelear fosse lá com quem fosse. Vá lá quele, logo a seguir, virô-se pô ôte lado, ia uma moça toda jêtosa ali sozinha, fecô todo crençoso com ela e desquecé-se de mim.

Campo de castanheiros (Castanea sativa)Pro jêto, os castanhêros gostam destes sitos adonde faça frio com fartura…

Ora ê cá aprevêtí logo o atopo, ponho-me a andar ali prê fora a tirar retratos à manadia que foi um consolo. Um consolo até que pisí uma pôça d’ água – cudava ê cá quera água… – e dí um escorregão. Olhem, aquilo, más um nada, dava tamém um bate-cu que ficava todo enlameado, más agarrí-me ali a um tróço dum castanhêro, enquilibrí-me e a coisa nã teve dúveda…

Já agora, pre falar im castanhêros, nã sê c’m’ les incarecer aquilo que pre lá vi. Andamos bem umas duas léguas – pra más que pra menes – e nã se via ôutra coisa que nã fosse tal arve. Mái, nã cudem, tudo alvoredo desposto im carrêras c’m’ deve de ser, tratados a tempo e horas e tudo munto mái velho do quê cá ó vomecêas…

Ora mái velhos… Até me dezeram que tavam lá alguns que, se nã tevessem duzentos anos, pa lá caminhavam… E ôtra coisa: ali ninguém corta uma arve daquelas ó a trata mal. Nã senhora. Nem que seja pôs podar, premêro têm que pedir lecença lá a quem manda naquilo. Calitros?!… Isso pre aquelas bandas nã há tal peste…

Calhando mecêas nã se fiam em mim, podem cudar quê cá tô a abusar, mái tejam certos qu’ aquilo é uma coisa quái do ôte mundo. Im tamanho, im tar bem arrenjado e im qôlidade. Fiquem sabendo que, méme nesta altura, inda panhí lá umas castanhitas per aqueles charazes e tavam quái todas boas pa quemer.

Campo de castanheiros (Castanea sativa)Im castanhêros, nunca tinha visto uma coisa assim. Grandes, bem tratados e muntos…

E boas quelas eram… Despôs d’ incher a barriga é que me vêo à idéa uma coisa: já haveram d’ andar um coisinho chafurdadas dos porcos brabos – javalis, le chamam… Mái já me tinha rapimpado com elas e bicho nã tinham… E que tevessem. Nã se usa a dezer que ‘bicho quê como nã me come ele a mim’?…

Pôs, nã sê se mecêas inda tã alembrados – os mái velhos cmê cá, quos mái nôvos, esses não – já hôve tempo qu’ aqui na nossa Serra tamém havia muntos castanhêros e a famila pôco mái cmia do que castanhas.

Batatas nã as havia, pão munto pôco, vá lá umas bejoarias quem as tinha, e, atão, eram as castanhas qu’ andavam sempe pà frente. Pa nã apodrecerem, até se gôrdavam com todo o precêto. Inda m’ alembra do mê pai – que Dés o tenha… – as interrar im arêa seca drento dum corcho e, em sendo preciso, ir-se lá desinterrá-las…

Gruta das Maravilhas - AracenaAtã nã vêm este lindo serviço?… Iste é béque-me o retrato do que há lá drento das grutas…

Mái, calem-se aí!… O melhor inda tava pra vir…

Ô fim da viaja, em chigando lá a esse tal sito adonde há as tales Grutas d’ Aracena, vinha já com os bofes de fora, assantí-me no premêro banco que me parceu na frente lá num jardim.

Logo, nã dí pre nada. A minha Maria assanta-se na ôtra ponta do banco e dá im me dar sinal

– Diz lá o que queres, melher…

E ela, nada… Só apontava pàs costas do banco e dava assim uma carcachada de gozo…

Até que se resolveu:

– Atã nã vês?!… Olha lá bem praí…

Olhí mái nã alcançava quái nada. Pus as minhas cangalhas, olhí melhor… ai, mãe! dô com aquele desenho que tá ali no retrato… Até me fiz incarnado, com vergonha!…

Nisto, vinha chigando a minha quemade Questóida más o mê compadre Jôquim do Barranco que tinham fecado pa trás… Dô um salto, fequi logo assantado ô mêo do banco munto bem incostadinho a tapar aquela trugia que tá no desenho pa eles nã verem…

Um dia que calhe, logo les conto o resto que se passou a seguir. Tá bom de ver qua minha Maria e a quemade Questóida, marafadas c’m’ são, puseram-se logo a mangar com-migo e fazeram um cagaçal do pior…

E pre qui me fico.

Passem bem e até que Dés quêra.